Antes mesmo de ter filhos, eu já tinha escutado versões 'politicamente corretas' para as cantigas infantis tradicionais, como aquela que canta assim: "não atire o pau no gato-to / porque isso-so não se faz-faz-faz / coitadinho-nho do gatinho-nho / não devemos, não devemos / maltratar os animais!!"
Confesso que, da primeira vez que ouvi, achei bacana. Pensei, puxa, uma mensagem legal pra criança, já vai ensinando os cuidados com os animais e tudo.
Hoje, depois de ser mãe, minha opinião mudou um pouco. Depois que entrei no "incrível mundo da maternidade", comecei a achar que as coisas pras crianças hoje em dia vêm muito mastigadinhas, muito corretinhas, quadradinhas demais.
Muita coisa eu acho que a gente racionaliza de um jeito que nem passa pela cabeça dos pequenos. A própria música "atirei o pau no gato" é um ótimo exemplo disso. Nenhuma criança interpreta a letra como um convite ao maltrato aos animais. Para eles, é apenas uma melodia bacana, com riminhas divertidas, e um convite a uma brincadeira descompromissada. A interpretação literal vem do nosso raciocínio, não do deles.
Outro dia, acompanhei em uma lista de discussão um debate acalorado sobre o tema, em que era citada ainda a cantiga "O Cravo Brigou com a Rosa". Entre os argumentos favoráveis a uma modificação da letra, o discurso era de que a estória contada na quadrinha era violenta, cruel. Sinceramente, acho um pouco demais. Novamente, nenhuma criança vai crescer achando por exemplo que violência doméstica é algo natural apenas porque, quando pequeno, cantava ou ouvia versinhos como "o cravo brigou com a rosa / debaixo de uma sacada / o cravo saiu ferido / e a rosa despedaçada".
A gente não pode esquecer que o mundo das crianças é abstração pura, que eles não tem o nosso raciocínio lógico, linear, quadrado. As cantigas infantis são lúdicas. Pode-se argumentar: 'mas não ensina nada!!'. Ok, e daí? Desde quando tudo tem que ensinar alguma coisa? Não se pode oferecer algo à criança apenas porque é divertido? Quando passamos a ser esses pais enfadonhos que preocupam-se em passar lições à criança a cada segundo de convivência, seja de brincadeira, de conversa ou o que for?
Quando a gente passa tudo mastigado para as crianças, tira delas a riqueza de aprender a lidar com as contradições, impede que elas aprendam por si mesmas a existir em um mundo onde há lugar para todas as nuances, não apenas as corretinhas e quadradinhas.
Além disso, as cantigas infantis tradicionais são legados populares, vêm sendo passadas de pais para filhos, avós, entre amigos, há muito mais tempo do que poderíamos ousar imaginar. Seria absurdo pensar que, se foram criadas e repetidamente passadas adiante da forma que são, é porque atendem a questões importantes para a criança? Porque dão-lhe a oportunidade de trabalhar sentimentos muitas vezes contraditórios e difíceis de entender para uma cabecinha de criança?
Às vezes penso que estamos criando um mundo controlado e asséptico demais para nossos filhos. É preciso dar-lhes liberdade, não só para rolar na lama e sujar-se à vontade, mas também para vivenciar o mundo em sua totalidade.
Para as minhas filhas, eu canto as cantigas tradicionais sem medo. Não altero letras, divirto-me com elas à moda antiga. Confio na capacidade delas de crescer aprendendo a separar realidade de ficção, de tatear o mundo com seus dedinhos curiosos com liberdade, sem controle excessivo. Desejo, mais do que tudo, que elas cresçam aprendendo a pensar por si mesmas, e a decidir de forma autônoma o que lhes serve, e o que não.
Afinal, a minha função é amar, proteger, acarinhar, orientar. Moldar, nunca.
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Imagem: http://www.gettyimages.com.br/
6 comentários:
bom dia!
gosto muito do seu blog!
sou adm. do blog “o fogo anda comigo”(thefirewalkswithme.blogspot.com).
o blog tem como ideal um SARAU AMPLIFICADO onde TODOS divulgam suas ideias e, o principal, poemas.
gostaria de ser um parceiro seu!
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Adorei, Rê!
Concordo totalmente e tb faço assim com o Sam, sem mudar letra nenhuma...
Aqui em casa eu também não mudo as letras e com certeza o divertido são as riminhas, a melodia... um bom exemplo também é uma música que faz muito sucesso aqui em casa e nem é tão antiga assim "Sopa" do Palavra Cantada, onde ela questiona ser possível haver piolho, javali entre outras coisas estranhas na sopa, e nem por isso vai incentivar as crianças a comerem essas coisas, é pura diversão mesmo.
As pessoas tem tanta pressa de viver hoje em dia que tentam encurtar caminhos ou se abstrair de culpas e comportamentos dos filhos, que muitas vezes não estão por perto pra acompanhar e orientar, e aí que entra a tal coisa de tentar treinar e moldar os pequenos.
Bora cantar do jeito que é!
Beijos!
O mesmo vale para as histórias infantis.Os personagens antagônicos ensinam a lidarmos com os sentimentos sombrios.Se aquele que canta não se sente abalado pela letra, aquele que ouve tb não irá. Parabéns pelo texto.
Adorei o texto. Fez-me refletir bastante. Mesmo. Eu ainda não tinha uma opinião completamente formada sobre o assunto. Ler o seu texto me ajudou a clarear o coração. É incrível como nos sentimos em paz quando encontramos o que nos veste. Seu texto me vestiu, me lembrou o que eu acredito: aceitar a vida, abrir o coração, e confiar.
E assim mais uma ficha caiu aqui dentro.
Beijos mamíferos...
Sabrina, fiquei emocionada com as tuas palavras, de verdade, sem medo de ser piegas, rs. Muito bacana mesmo quando a gente enxerga no outro uma comunhão tão bacana com o que a gente pensa, deseja, sonha, acredita. Beijo, flor!
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