Quando estava em trabalho de parto (poupo vocês dos detalhes, visto que meu parto não foi um parto dos sonhos - dos sonhos mamíferos, quero dizer), meu marido olhou bem pra mim e disse:
- Aqui começa a maior aventura de nossas vidas.
E eu não podia imaginar o quanto ele estaria certo. Daquele instante em diante aconteceram muitas coisas, mas o que tenho de mais marcante do dia em que me tornei mãe foi o olhar da minha filha logo após o nascimento, mais precisamente no momento em que a colocaram sobre meu peito. Não me lembro de quantos minutos se passaram entre o instante em que ela foi retirada da minha barriga e esse encontro mágico, só o que sei que nesse espaço de tempo ela chorou em volume máximo até sua pele tocar a minha, quando então nosso mundo parou. Ela silenciou e seus olhinhos encontraram os meus. Dizem que o bebê nada vê além de vultos nos primeiros meses de vida, mas isso não importa, tenho certeza de que os olhos da minha filha tocaram minha alma.
A amamentação foi meu resgate. Me apaixonei por minha filha e por amamenta-lá. A enfermeira que havia contratado para me ajudar dizia que nunca tinha visto uma mãe tão grudenta como eu. Minha filha mamava o tanto que queria, adormecia “chupetando” meu peito, dali a pouco ele enchia de novo e ela voltava a mamar, dormindo mesmo. Se soltava do peito, ao acordar já reclamava...e voltava pra lá. Realmente, pra quem está acostumada a acompanhar mães que dão um peito por cinco minutos, mudam pro outro por mais cinco, e entregam pra babá colocar pra arrotar, aquilo era no mínimo esquisito. E a ironia nisso tudo é que esquisita eu sempre fui, mas sempre tentei me adequar, sempre me esforcei imensamente pra fazer de conta que não era. Em alguns momentos até cheguei a enganar a mim mesma e acreditar que não era tão esquisita assim. Mas a maternidade me trouxe isso: a coragem de ser esquisita, e daí?
Passados quatro meses comecei a me preparar para o retorno ao trabalho, um bom emprego numa grande corporação, que me proporcionava tanto status quanto stress. Além de amar amamentar, meu desejo era manter a amamentação exclusiva por mais tempo. Então comprei uma bombinha para retirar leite para congelar e ter um estoque para quando a licença acabasse. A idéia era amamentar antes de sair, na hora do almoço e no final do dia voltar pra casa uma hora mais cedo, o que é permitido por lei para as trabalhadoras que amamentam. Durante os períodos em que estivesse fora, minha filha mamaria o meu leite, numa mamadeira. Eu tiraria leite com a bombinha duas vezes por dia no trabalho e assim manteria a produção de leite. Estava tudo acertado na minha cabecinha virginaiana, mas meu plano se desmanchou como um castelo de areia diante da força de uma onda: eu e a famigerada bombinha não nos entendemos. Nem a primeira, nem as outras duas que comprei na desesperada tentativa de tirar leite de um peito cheio e abundante que se recusava a fazer descer leite para uma...máquina.
Bem, em resumo, com um empurrãozinho do destino e o apoio da minha terapeuta e do meu marido, pedi demissão e o resto é história. A mamífera que existia em mim, enfim, estava livre. A esquisita finalmente se encontrou dentro desse corpo - e dessa mente - que a rejeitavam.
Minha vida mudou radicalmente. Entrei na caverna e ali fiquei, quietinha, por alguns anos. Cuidei da minha menininha, cuidei de mim mesma, li, estudei, bloguei, tirei muitas fotos. Fiz uma imersão prática e teórica no tema maternidade. Descobri como é difícil a condição da mulher que opta por ter filhos – tanto da que decide ser mãe em tempo integral e de certa forma se torna uma pária social (quem, como eu, passou por isso, vai saber exatamente do que estou falando), quanto da que escolhe continuar trabalhando e encara dupla, tripla jornada...e muita culpa. Com isso percebi como é cruel o preço que pagamos para nos adequar: calar nossos instintos e nos alienar de nós mesmas.
Agora estou voltando ao mundo, pouco a pouco saindo da caverna. Mas não, não voltarei ao mundo corporativo! Dias atrás, assistindo a essa palestra de Isabel Allende, no TED, que embora não tenha como tema a maternidade aborda a evolução do feminismo, a importância da energia feminina para a humanidade e a paixão que nove algumas mulheres, me lembrei da frase de Gandhi “seja você a mudança que deseja ver no mundo”, que por sua vez me remeteu aos projetos nos quais ando envolvida e às mulheres apaixonadas com quem tenho trabalhado e compartilhado ideais e projetos.
Tenho poucas certezas nessa vida, e uma delas é de que a forma como trazemos novos seres ao mundo e a qualidade da infância que proporcionamos a nossas crianças são a chave para uma humanidade mais fraterna e empática. Atribui-se também a Gandhi a frase “if there is to be peace in the world we must begin with the children”. Faz todo o sentido pra mim e, hoje, é o ideal que me move e que além de me influenciar como mãe está me impulsionando para um rumo profissional totalmente novo.
Isso tudo pra contar pra vocês sobre a mãe que escolhi ser, totalmente diferente da que imaginava que seria antes dessa aventura chamada maternidade começar. Apesar de minha vida ter virado de cabeça pra baixo - e lidar com isso não é fácil – estou muito feliz com o rumo que ela tomou - a vida não me levou, mas foi conduzida pelos meus instintos maternais e mamíferos e pelo exercício incessante de fazer escolhas conscientes com respeito ao que sou, ao que fui e ao que quero ser.
Imagem: www.gettyimages.com.br
19 comentários:
Que legal, Renata!
Desejo do fundo do coração que você continue muito feliz.
A sua história faz parte da história de uma nova "safra" de mulheres destes tempos. Gosto de conhecer histórias como a sua.
Acredito nas mesmas coisas que você, por isso nem tenho muito a acrescentar. O chato de concordar tanto é isso...
Um abraço,
Michelle
Que lindo Renata! Divino o texto, a história! P A R A B É N S ! Isso me fortalece a seguir nos ideais mamíferos que eu tanto me apaixonei desde que meu rebento chegou, há quase 1 ano! =) Lindo! Beijuls!
Oi querida!
Com algumas nuances diferentes, percorri um caminho muito similar, e hj estou na caverninha. Aprendendo muito, descobrindo, desvendando. E adorando. Obrigada por compartilhar tua história...
Beijo grande!
Olá,
Foi emocionante e incrível le r a sua história e rever em minúcias a minha "identica" descrita, cada evz acredito mais na frase que minh avó me disse quando larguei tudo e assumi meu lado "leoa, mãe primata mamífera de sangue e alma" - Você , minha linda não teve um filho, você se tornou mãe...e prá mim isso bastou prá caminhar até hoje nessa jornada, fiquei na canerninha 01 ano e 7 meses...e hoje saí prá trabalhar, prá caçar...rsrs mas só porque posso fazer isso a 4 quarteirões de casa e fugir prá lá sempre...
Parabéns! Adorei o texto! vou postá-lo no meu blog com link e todos créditos parta você posso?
beijinhos
Infelizmente as coisas não serão como eu gostaria, pois preciso trabalhar fora pela manhã e à tarde.
O menos mal é que trabalho em frente a minha casa (foi uma luta conseguir isso, apesar dos inconvenientes acho que valerá a pena) e minha licença maternidade será de 6 mese (muito pouco, eu sei, mas ao menos poderei amamentar exclusivamente até os 6 meses).
Demorei pra decidir ter um filho por conta das muitas dificuldades, mas por acreditar que, apesar de todos os obstáculos que atravessaremos, valerá a pena, encontro-me agora com 39 semanas de gestação. E feliz, muito feliz!
Guria, incrível como a gente se identifica com aslgumas coisas que lê, parece que falam da gente, hehehehe.
Sei o bem o que tu sentiu, pelo que vi além de semelhanças na forma de amamentar (tb fui e sou uma 'mãe grudenta', hahahaha), temos a mesma formação acadêmica ou ex-profissão.
Adorei o texto.
Bjão.
Ps: não sei pq, mas me palpitou que teu ascendente é sagitário...
Pior, nem imaginava ser mãe uma vez na vida...rss..e qdo fui, até hoje ouço:"nossa, não consigo imaginar vc como mãe!" me sinto honrada será?..não sei, mas hj grávida de novo aos 7 meses tenho certeza de uma coisa, NADA na minha vida foi tão bom quanto ser mãe. O instinto mamífero falou mais alto na hora certa!..bjss
Meninas :-)
Abri meu coração pra vcs, e fico encantada em ver como há aos montes, por aí, histórias como a minha. Esse mundão tem mais mamíferas do que podemos imaginar, felizmente!
Rezica, mais uma vez agradeço pelo convite, foi delicioso escrever aqui :-***
beijos em tod@s!
Renata
Renata, parabéns, parabéns, parabéns por tanta honestidade e tanta beleza no seu relato. Me emocionei...
Um dia desses eu tava conversando com uma amiga sobre a coragem que devemos ter de ser quem somos, e eu vi essa coragem em você!
Mais um vez, parabéns!
A propósito, a palestra da Isabel Allende no TED não dá para perder! Para concordar ou discordar, não importa.
Às interessadas (em ver ou rever), repasso o link:
Isabel Allende no TED
Renata, lindo texto, linda história.
Que demais ver que tantas de nós fazem as mesmas escolhas e enfretam os mesmos desafios.
Eu tb parei de trabalhar fora e hoje tenho muito orgulho de dizer que escolhi conscientemente um "encolhimento profissional" (nas palavras da Kalu) para me dedicar a incrível experiência da maternidade.
Ganho menos e vivo um certo ostracismo social, mas não tenho nenhum sentimento de culpa sobre minha relação com minha filha.
E estou muito, muito feliz!
Bebel
Oi Renata,
Acompanho a sua história há algum tempo e acho lindo que você tenha conseguido seguir seus instintos mamíferos! Tenho certeza que vocês duas ganharam e muito!
Beijo
Que loucura! Tive a sensação de que o texto foi escrito pra mim! Estou a duas semanas em um batalha interior fortíssima, teria que ter voltado ao trabalho no início da semana mas não consegui, acabei tirando as férias que me restavam e vou assumir a mamífera que mora em mim...Com meu primeiro filho tive o previlégio de ficar amamentando por dois anos, acompanhando tudo!
Estou disposta a deixar meu emprego, que por sinal a-do-ro!!Não me sinto livre dos medos, da insegurança, e confesso, do julgamento que as pessoas poderão fazer;
Agora meu título é: Na caverna da infância de ouro!!
Parabéns pelo texto e pela atitude!! Super Mamífera!!
muito bacana o seu caminho. eu também não sou a mãe que imaginei que seria, mas estou sendo a cada dia a mãe que traz, além de muita felicidade, uma mariana que eu não conhecia.
bom demais
um beijo
Ei Renata, parabéns pela coragem.
Eu também optei por parar de trabalhar e me dedicar a maternidade e sei, como você disse, não é fácil.
É complicado deixar de ganhar dinheiro, reduzir contas, o ciclo de amizade muda, os assuntos.
Mas como você, concordo que abrem-se novas possibilidades e um mundo novo!
Obrigada por compartilhar sua experiência!
Beijos!
Letícia
mais uma vez obrigada pelos comentários. Tenho certeza que essa troca só nos fortalece em nossos propósitos e decisões.
Mãe do Popinho, fique à vontade pra postar no seu blog.
Mariana, é uma grande verdade, e sinto que isso é inclusive muito forte aqui no Mamíferas e suas leitoras: com a maternidade nasce uma mãe e uma nova mulher - nada é como antes se mergulharmos de corpo e alma nessa aventura. E isso é muito bom!
Leticia, vc fala em novas possibilidades e oportunidades, mas acho que a maior delas é essa de que a mariana falou, que na verdade nos levará a todas as demais: a transformação de quem somos, pra melhor :-)
Bebel, vc usou uma palavra interessante na qual eu nunca tinha pensado: ostracismo social. É uma grande verdade. É tudo muito sutil e silencioso, não se fala nisso. E isso só reforça minha ideia de que hoje a maternidade é festejada com intuito econômico apenas. Valorizada que é bom...nada!
E a todas as mamães mamíferas: um grande beijo!
Re
Lindo parabéns!!
Achei maravilhoso o esforço que vc fez ao se dedicar totalmente à sua filha. A parte de ficar com ela na verdade é a única que não se encaixa nessa palavra "esforço", porque tenho certeza que, apesar da falta que o mundo exterior lhe fazia, a única pessoa com quem queria estar nesta caverna era sua bebezinha!
Às vezes acho que queria fazer isso também... o que quero ser quando crescer? Mãe! Digo isso pois farei 18 anos na próxima semana, e daqui 2 meses e meio minha filha nascerá. Infelizmente terei que estabilizar minha vida e cuidar da minha filha, porque se eu pudesse, faria exatamente como vc, eu acho! =)
Parabéns! Com certeza você fez a diferença com essa criança, passando tanto tempo e dando tanto amor e carinho a ela!
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