Zoológico de Belo Horizonte, domingo ensolarado. Estava eu, meu marido e Miguel em frente à jaula do Jacaré. Uma mãe começa a gritar:
- Vem fulano, seu imbecil. O jacaré tá se mexendo. Vem logo, seu lerdo. Você é um debilóide.
Senti uma dor tão grande no meu peito. Perguntei para a mulher porque ela estava falando assim com seu filho (de uns 7 anos) e ela simplesmente me respondeu:
- Ele é um imbecil mesmo. Tô de saco cheio dele.
A grande maioria das pessoas não tem o menor respeito com as crianças. Provocam para que tenham reações de medo, de posse, de agressividade. Muitas costumam tirar as coisas violentamente da mão dos pequenos sem maiores explicações.
Estas atitudes para mim são imperdoáveis. Uma vez meu filho, com uns 13 meses, fez cocô e eu fui trocá-lo. A cunhada do meu marido começou a dizer:
- Aê, Cagão (desculpem pela palavra).
- Ele é apenas uma criança, disse eu, que ainda não aprendeu a fazer cocô em outro lugar e eu não permito que você fale assim com ele.
Também nunca deixei que ninguém mandasse ele calar a boca ou pegasse algo dele e dissesse: isso é meu. Quando isso aconteceu, uma ou duas vezes, eu delicadamente expliquei para não fazer isso para não desenvolver um comportamento possessivo no meu filho. Sugeri que brincasse de: eu te dou isso e você, o que me dá? Brincadeira essa que sempre fazíamos aqui em casa. Um brincava com o brinquedo do outro e depois destrocávamos.
Outra vez meu pequeno inventou que tinha um nenê (imaginário) que ele cuidava. Alguns de meus tios e primos mais velhos começaram a fingir que tomavam o bebê dele e jogavam no chão. Meu filho começou a chorar desesperadamente e veio me dizer:
- Mamãe, pegaram meu nenê e ele tá dodói. Ajuda eu.
Fui lá e pedi que parassem com aquilo. Todos ficaram rindo do choro dele e dizendo que se eu estimulasse ele ficaria maluco.
Eu acho que estas pequenas coisas fazem tanta diferença para a vida a fora que deveria existir uma ONG em defesa ao respeito da criança. Respeito à infância no seu sentido mais amplo. Algo que fosse ensinado em um curso obrigatório para gestante, que fizesse parte do pré-natal.
Porque muitas destas atitudes são impensadas e fazem parte de um comportamento repetitivo cultural de "desprespeito" aos pequenos seres humanos. Aquele ser passou por aquilo e apenas está repetindo o mesmo padrão
Não é difícil entender porque nossa sociedade também não respeita os idosos, que, talvez, não por acaso, passam a desenvolver comportamentos semelhantes aos das crianças (incontinência, teimosia, necessidade de repetição etc).
É como se neste momento toda a nossa dificuldade em lidar com aquilo que é dependente despertasse um medo de vir a perder aquilo que a sociedade exalta como o grande sucesso de um ser humano: a independência.
Cedo se aprende que não precisamos de pai/mãe, de Deus, de amigos, da família. Ele mamou mamadeira, que pegava sozinho e esquentava, mesmo antes de falar e este ato é exaltado pela mãe que diz que seu filho não deu o menor trabalho, mesmo porque ela não tinha tempo para isso. Este ser que aprendeu a consolar-se sem ser ninado, que leu cedo, que usou todo seu tempo livre para desenvolver milhares de habilidades, muitas delas que não faziam o menor sentido para sua existência, como fazer escola de futebol, ou dançar balet para realizar o sonho frustado dos pais.
E não é a toa, também, que uma das maiores doenças da atualidade seja a depressão e o medo da solidão. Desde de cedo temos que aprender a segurar o choro, a superar a dor sem acalanto. Esquecemos de olhar as nuvens no céu e desfrutar do ócio.
Nossos amigos imaginários são desdenhados ou tratados como anomalias e cedo temos que viver em um mundo real em que pais não são mais mágicos capazes de afastar os medos mais profundos da noite escura ou curar com um beijo um machucado. Um mundo sem anjos da guarda, sem a magia da natureza, a poesia de ser criança.
Enquanto não existe essa ONG que proteja o universo infantil, o direito da dependência, da fantasia, dos sonhos e magias, eu proponho que cada mãe que aqui está engaje-se neste projeto secreto de fazer uma sociedade que respeita, sobretudo, todas as formas de vida para fazer desde mundo um lugar mais solidário.
18 comentários:
Oi Kalu, acabei de ler seu post e fiquei com o coração partido... isso é tão triste, sei que parece bobo e até um "exagero" para muitas pessoas, mas acho que as pessoas perderam um pouco o saber se relacionar... hoje existe uma quebra de relacionamentos entre as pessoas que é muito preocupante... e o pior é que isso acaba sendo passado de geração pra geração... eu trabalho com crianças de uma comunidade e é cada história que a gente vivencia, e quando vamos falar com as mães elas não acham errado, tem uma "normalidade" anormal hoje em dia...
Muito preocupante isso..
Beijos querida, e parabéns pela sua coragem de ter falado com a mãe, a maioria das pessoas acabam se calando...
Tenha uma semana maravilhosa e com muito amor!!!
Kel
www.lojinhadakel.blogspot.com
Se a gente parar para prestar atenção ao redor, como você fez, ou apenas mantiver os sentidos de prontidão, vai notar a imensa quantidade de absurdos e iniquidades praticada contra seres indefesos ou em situação de "inferioridade". Pior ainda quando percebemos que os autores desses atos são quem está em situação de provedor ou protetor. Passo meus dias me indignando com a aparente "normalização" desses comportamentos!
Nossa! Adorei o texto, até pelo fato de me identificar, não por ser mãe, mas por ser em defesa das crianças, vivo vendo mães, pais e cuidadores tratarem mal as crianças, tratá-las como se fosse nada, como se não tivessem direito a palavra, atitudes, brincadeiras ou simplesmente vivenciar sua infancia. Me revolto, mas infelizmente ainda não tive coragem de repreender mãe alguma, no máximo faço cara feia. Já vi cuidador arrastando o filho no chão do shopping, ou brigar feio pq a criança estava andando devagar, quanto absurdo!
Enfim, mas vou um pouco mais, a gente se choca com criança por ser um ser indefeso, mas digo,o ser humano desaprendeu foi a lidar com seus semelhantes, vivencio diariamente pessoas destratando pessoas.
Adoro esse blog, incrivel, chega sinto uma paz de espirito ao saber que tem pessoas como vocês. Não apenas mães consciente, mas humanas.
Algumas vezes já pessei por situações assim de avacalharem com meu filho pq ele fez cocô, ou pegarem coisas da mão dele dizendo "isso é meu", ou tirarem objetos dele da mão de outra criança devolvendo e dizendo "isso é do Uriel". E sempre que esse tipo de coisa acontece fico meio sem saber o que fazer pra não magoar a pessoa e nem deixar aquilo assim. Falo, mas sempre fazem aquela cara de "que besteira". Gosto das tuas idéias em casos assim, grata por compartilhar!
E oh, já tô querendo a carteirinha dessa ONG, viu?! ;)
Beijinhos
Oi Kalu,
Eu trabalho num Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescentes - CEDECA. Existem 32 CEDECAs no Brasil e a maioria filiados à ANCED (Associação Nacional dos Centros de Defesa).
São ONG´s autônomas que existem para lutar pelos direitos humanos de crianças e adolescentes previstos na Lei 8069/90 - o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Infelizmente na história da infância em nosso país, crianças sempre foram subjugadas e tratadas como objetos, até um passado recente.
Basta lembrarmos de tempos de outrora na ditadura onde prevalecia como lei o "Código de Menores" que criminalizou a infância e posicionava a criança como objeto do mundo adulto. Essa "cultura" de objetificação da infância é o que respalda pais a xingarem desmedidamente, a baterem em seus filhos,a tratá-los como menos,e em casos mais chocantes levando até ao abuso sexual.
Poderia escrever páginas sobre isso.
Trabalho no CEDECA há seis anos e já vi mais do que eu gostaria quando se trata de realções prejudiciais entre adultos e crianças.
Adorei seu post!
Conte comigo nessa empreitada.
Para saber mais:
www.cedecainter.org.br ou
http://www.anced.org.br
Grande beijo!
Ai Kalu... falou tudo que eu queria falar!!! Essas coisas também me sensibilizam DEMAIS.
Fico feliz que você tenha um filho de dois anos e meio, porque eu ainda sou gestante e ninguém me dá crédito. "Cresça e apareça", é o que me têm dito...
Ai como dói ver tanto descaso com o imaginário infantil! Esses dias estava no sesc e a Teresa não queria deixar a brincadeira para ir lavar as mãos - nada mais natural, afinal brincar é sempre mais legal. Um segurança que havia feito alguma gracinha com ela antes, falou "O que? Você não quer obedecer a mamãe? Péraí que eu vou ligar" e pegou o rádio e fez que estava ligando "Péraí que eu vou ligar pro Papai! Vou ligar pro Papai, pra polícia e pra Super Nanny!" Meu deus!!!!! Juro que fiquei sem reação e tirei minha filha e minha sobrinha de lá o mais rápido que pude antes que ele se empolgasse mais na farsa! Entrei no banheiro com as duas assustadas e tive que explicar que era uma brincadeira, que ele não ia ligar pra ninguém.
Ai, gente, não existe o menor respeito pelo imaginário infantil, de fato. E isso é só início para oturos tipos de agressões...
Fê (Mouco) eu super respeito sua opinião, viu!!! rsrs
E Kalu, estou contigo nesse projeto secreto!
beijocas
Lindo post Kalu!
A cada dia me proponho mais e mais a oferecer esse mundo aos meus pituquinhos!
Aí, aí, Pauleca, até a super Nany está sendo convocada, hein!
Q exemplo de respeito, óh! Céus!
Fê Mouco, ñ precisa q os outros acreditem nessa sua postura mesmo sem ter filhos ainda, basta vc ter isso no seu coração.
E sim, a idéia da ONG é bem bacana!
Eu adoraria participar!
Estou à disposição!
Abç forte,
Fernanda
(da Rafa e do Lucas)
é por essas e outras que quando eu crescer eu não quero me tornar um pirata e esquecer todas as aventuras que passei na terra do nunca. "EU ACREDITO EM FADAS! ACREDITO! ACREDITO!"
joh pai da julia, da livia e da duda, que ainda mora na barriga da lili
Muito legal o seu texto.
Eu também já vi algumas situações parecidas e é muito triste.
Uma vez escutei uma que fiquei horrorizada: um menino de 4 anos falou um Ai meio fininho e a professora disse que ele estava parecendo uma bicha. A escola tinha acabado de mudar de diretora e de professoras . Eu comentei com a antiga diretora que também era psicóloga e sugeri que ela desse um curso para as que se denominavam professoras pois senti um total despreparo destas para lidarem com as crianças.
Nesta época ainda não tinha filhos mas pensei em como é importante escolher uma boa escola com uma equipe bem preparada.
Oi Kalu, seu texto bateu fundo no meu peito, ainda não tenho filhos mas sou filha e não quero repetir certos padrões.
Bjos!
E qndo ficam falando: dá tchau, dá um sorriso, faz o biquinho, faz isso, faz aquilo, como se a criança existisse pra atender os desejos dos adultos....Ou então quando a criança, se machuca, chora e vem alguém e diz "não, não foi nada"....anulando seus sentimentos, como se o q ela sente não fosse real???? Eu fico realmente indignada, sinto esse tipo de comportamento como agressão e mtas vezes não sei como reagir, principalmente com familiares. Acabo simplesmente me afastando. E pregando qndo sinto q posso tocar algo...
Kaluuuu, quando li seu perfil... das três autoras do mamíferas... é a que menos me identifico em termos de características e gostos... Porém, addddoooroooo muito os seus textos e a mãe que você é para o seu filho! Também sou mãe e gostaria que todas as mães fossem dedicadas, amorosas, abertas como vc! Me identifico muitooooo....
Kalu,
Finalmente consigo entrar no blog, e ler o seu post. Como tudo isso é verdade. Eu ainda não sei como lidar com pessoas que desrespeitam as crianças. Fico sem ação. Concordo com você. Se os filhos não puderem contar com os pais para os defender de abusos como esses que você citou, e se os próprios pais forem os autores de tamanha atrocidade, não há como a gente querer um mundo melhor. O nosso futuro fica comprometido.
Aqui estamos em processo constante de aprendizado. Cada dia vamos moldando o nosso futuro.
Um grande beijo para vocês...
Que post inspirado, lúcido e infelizmente verdadeiro nos seus questionamentos.
Também sofro pelo desrespeito que nossas crianças sofrem hoje em dia. Invadidas, desconsideradas, cobradas,"adultilizadas" e feridas nos seus sentimentos e emoções.
Eu tento fazer diferente com minha filha, mas me preocupo quando não estou por perto... o que será que ela ouve, recebe, aprende quando estou longe? Ficam sempre fanstasminhas me rondando!!!
Oi Kalu adoro seus textos vc não imagina o quanto eles me ajudam, adorei este, tenho pensado muito numa ONG assim, que trabalhe a educação para a paz...que reuna pessoas que tenham esta consciência. Você é uma mulher iluminada continue socializando conosco a sua experiência. Grande abraço
Kalu, só hoje li esse seu texto. Absolutamente irretocável, perfeito e... Insuportável. Insuportável porque não tem nenhum sofisma, nenhuma mentira.
Como a Rê Gomes, eu fico indignada com esse tipo de postura dos adultos. Na verdade, meu maior medo de ter uma menina é entrever as oportunidades de brigar com os outros em face da minha despreparação para passar o meu recado sem agressividade nem desrespeito. Tenho muito medo disso.
Também fico maluca quando mentem para o meu filho. O pior é que, como meu tato é zero, acabo desmentindo a pessoa na hora, o que é potencialmente bem desconfortável. Ainda não sou capaz de agir com empatia e ternura diante dessas situações, ainda que seja capaz de entrever os motivos e o´próprio histórico de violências a que essas pessoas foram submetidas, a ponto de acharem naturais esse tipo de postura. Diante de comportamentos como mentiras, anulação de sentimentos, gargalhadas diante de fragilidades em relação ao meu filho, eu sou totalmente passional e falo com um tom inquestionável. Ninguém tem coragem de me questionar, mas sei que apenas protejo meu filho, não esclareço ninguém, e isso me entristece.
Um dia Estêvão pegou a boneca de uma menina e começou a niná-la nos braços. Um parente então veio, mais que de preça: olha o viadinho e tentou tirar a boneca dele. O Kevo no ato pediu minha ajuda, chorando, e recebeu mais gargalhadas. Eu disse, no meu pior tom "cala a boca
: eu não admito que se fale assim com meu filho. Ele tem todo o direito de brincar com bonecas, se ele quiser, e se algum homem acha isso ameaçador para a masculinidade, o problema é dele, não do meu filho.
Não gosto de ainda estar nesse estágio, e apesar de achar que
é preferível ser assim que ser indiferente ou fazer coro com quem perpetua esse tipo de violência, desejo muito crescer e ser capaz de acolher aos dois: a quem sofre e a quem pratica a violência.
Postar um comentário